"Nunca duvide que um pequeno grupo de pessoas conscientes e engajadas possa mudar o mundo; de fato, sempre foi, somente, assim que o mundo mudou."

(Fritjof Capra)

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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Olhos para ver, ouvidos para ouvir


A complicada arte de ver

Rubem Alves*

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: “Acho que estou ficando louca”. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões – é uma alegria!

Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica.

De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões… Agora, tudo o que vejo me causa espanto.”

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as “Odes Elementales”, de Pablo Neruda. Procurei a “Ode à Cebola” e lhe disse: “Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: ‘Rosa de água com escamas de cristal’. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta… Os poetas ensinam a ver”.

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: “A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê”. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado.

Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: “Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra”.

Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.

“Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios”, escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido.

Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada “satori”, a abertura do “terceiro olho”. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: “Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram”.

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, “seus olhos se abriram”.

Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em “Operário em Construção”: “De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa – garrafa, prato, facão – era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção”.

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas – e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre.

Os olhos não gozam… Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras.

Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: “A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas”.

Por isso – porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver – eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar “olhos vagabundos”…


*Educador e escritor.

Texto originalmente publicado no caderno “Sinapse”, Folha de S. Paulo, em 26/10/2004.


Por: http://abraabocacidadao.blogspot.com


Só Rubem Alves com toda a sua sensibilidade de grande Educador para escrever um texto como esse.
Por essa e outras que acredito que "Educar é uma Arte"! O ensinar enquanto Arte é a arte de ver com os olhos da alma; a arte de ouvir com o coração; a arte de sentir ao toque sutil; arte de inspirar e degustar o sabor das descobertas para enfim elaborar a Arte do Pensar.
Pensar crítica e reflexivamente para só então construir qualquer conhecimento significativo para a vida.
Ah...como precisamos de educadores artistas!
Entretanto, se faz necessário lembrar que para toda e qualquer arte é fundamental ter condições materiais, econômicas e morais. E os nossos professores possuem tais condições?
(Rosa Zamp)

9 comentários:

  1. O educador é um artista. Se não artista também não será educador.

    O texto é muito bom. Não deixa ninguém de fora.


    Educar não é complicado. Havendo vontade o resto virá. Só não vê isso quem não quer; quem gosta de complicar e elaborar grandes teorias...

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  2. Uma escolha fantástica Rosa!.. e sua complementação já diz tudo.. "educar é uma arte"!

    Beijoquinhas super em seu coração..
    Verinha

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  3. M.

    Começo a apostar que tua profissão é professor...
    Lembra que me disse que um dia contaria? Pois é, poderia ao menos me dizer se estou quente ou muito fria na minha aposta.

    Beijos da sua fiel colonizada.

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  4. Verinha
    Bem se vê que tens sensibilidade apurada.

    Obrigada pela sua companhia permanente por aqui, estou adorando.

    Beijos no coração minha linda.

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  5. Rosa
    Deixa-me dizer-te que um texto tão rico quanto este tira-nos da cegueira total... é como se dissessemos extasiados: "Meu Deus, afinal ainda tenho tanto para ver...cada dia vejo algo diferente...algum dia terminará?"
    Adorei, simplesmente!
    Voltei a lembrar-me da minha mãe (aliás ela está sempre comigo)... ela é uma pessoa tão humilde, pouco letrada, mas vê tanta coisa que escapa à maioria das pessoas. Sabes, ela está a ficar cega, fisiologicamente, o que é uma lástima... (tem uma doença degenerativa incurável) mas eu já lhe disse que ela vê com o coração e com a mente...
    O Educador na sua arte de "ensinar/aprender" deve ser capaz de partilhar e criar... daí que mesmo sem grandes condições consegue grandes "obras". lembra-te dos professores em África.. o que têm de condições? nenhumas... mas todos os dias eles criam coisas...as adversidades podem ser um motor para criar arte..
    Bjs grandes

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  6. A arte de ver enxergando, com alma, coração ou mesmo circunstancias de vida, depende principalmente de uma tranquilidade politica e econômica. Acho que é exigir demais dos professores dentro desta realidade minguada em que ele faz um trabalho milagroso e consciente de seu papel na importância do amanha. Concordo com a união como forma de mudança, como forma de começo para uma transformação maior.
    Não só ele precisa ver de outro modo, os alunos, funcionário, familia, todos precisam, ai, complica tudo.
    Abraços
    Emfim

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  7. CF
    Não, nunca terminarás de enxergar desde que queiras ver de fato.
    Lamento pela enfermidade da sua mãe, mas acredito sinceramente que hoje ela vê muito mais do que antes porque ela vê com os olhos da alma.
    Nós professores (com excessões) temos sim capacidade de criar e recriar,mas chega a ser desumano o que estão fazendo conosco. Então me pergunto: até onde irá nossas forças, nosso amor pela educação, nossas capacidades sem ter reconhecimento algum...nada?
    Beijos querida e para sua mãe também.

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  8. Jader
    O que a lhe dizer? Com aperto no peito digo está absolutamente correto.
    As suas palavras são minhas no comentário que fiz acima para a CF. Até quando a arte que temos de criar, de nos superar mesmo nas piores condições, de olhar com amor irá se sobrepor às nossas necessidades básicas de sobrevivência e de dignidade?
    Sei que está corretíssimo, mas dói constatar através de palavras de pessoas sábias e sensatas como você, aquilo que por mais que a gente saiba, por mais que se discuta, por mais que busquemos soluções...tudo está se tornando uma mera utopia.
    Obrigado companheiro de blog pela sua parceria.
    Abraço e ótima semana!

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  9. lol

    Estás sobre brasas:)

    Mas a minha opinião seria a mesma:)

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Suas palavras são mais importantes que as minhas...